sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

USOS LINGUÍSTICOS COMO ELEMENTOS CONSTRUTORES DA IDENTIDADE SOCIAL DE BAMBURRISTAS DE GEMA DE OPALA NO MUNICÍPIO DE PEDRO II – PI




Ernâni Getirana de Lima (UESPI-Universidade Estadual do Piauí).

RESUMO: Conhecido nacional e internacionalmente como Terra da Opala por ser o maior exportador mundial dessa gema, o município piauiense de Pedro II possui cerca de seiscentos homens (os bamburristas) que trabalham de forma precária em garimpos locais. O artigo, fruto de minha dissertação de mestrado, procura estabelecer algumas relações entre a lingua(gem) utilizada por este grupo socialmente invisibilizado, inserido em uma sociedade que os ignora, e seu  processo de construção identitária a partir do garimpo como espaço simbólico. A conclusão é de que a lingua(gem) é um dos componentes fundamentais na construção da identidade sociocultural do grupo, perpassando os demais elementos formadores dessa identidade e os amalgamando.

PALAVRAS-CHAVE: bamburristas; usos lingüísticos; opala; identidade.

ABSTRACT: Known nationally and internationally as the Land of Opal for being the world's largest exporter of gemstone, the municipality of Pedro II, Piauí state, Brazil, has about 600 men (the bamburristas) who work in mines in precarious places. The article, results from my master's dissertation,  seeks to establish some relations between language used by this group invisibilized socially, inserted in a society that ignores them, and the process of identity construction from the mine as a symbolic space. The conclusion is that the language is one of the key components in the construction of sociocultural identity of the group,  permeating all elements of this identity and amalgamated them.

KEYWORDS: bamburristas; language uses; opal; identity.

1. Introdução

Localizado a 4º 25’ 18” de Latitude Sul e 41º 27’ 34” de Longitude W, Gr, o município de Pedro II – PI, com uma área de 3.019 Km2 (três mil e dezenove) km², e uma altitude média de 550 (quinhentos e cinquenta) m, distando cerca de 195 (cento e noventa e cinco) km da capital do Estado, Teresina, é conhecido nacional e internacionalmente  como a Terra da Opala. Cerca de 600 (seiscentos) homens, os bamburristas (neologismo usado aqui em oposição ao termo bamburrador, que é aquele que encontra de uma só vez uma quantidade considerável de opala, tornando-se imediatamente rico), com faixa etária entre 18 (dezoito) e 75 (setenta e cinco) anos extraem essa gema há 60 (sessenta) anos em cerca de 34 (trinta e quatro) garimpos, localmente chamados de barreiros. Apesar de ser um dos grupos sociais cuja força de trabalho concorre de maneira substancial para o incremento da economia local, os bamburristas, além de excluídos do bônus econômico gerado pelo comércio de opala (o grosso da lucratividade fica nas mãos dos empresários da opala), sofrem do fenômeno da invisibilidade social. Apesar disso bamburristas têm construído sua identidade sociocultural no contrapelo de uma conjuntura que lhes é adversa, lançando mão de usos linguísticos como um dos principais suportes construtores dessa identidade.

O processo de invisibilidade social dos bamburristas não é exclusividade desse grupo. Trata-se de um processo em escala global que atinge trabalhadores localizados na base das cadeias produtivas dos processos produtivos capitalistas e possui estreita ligação com o fenômeno da precarização do trabalho (ANTUNES, 2006; SILVA, 2005), embora, no caso dos bamburristas, haja outros fatores de ordem local que tornam a situação desse grupo peculiar. Dentre estes fatores, o fenômeno do coronelismo, que, ainda hoje, carrega com fortes tintas o cotidiano da sociedade pedrossegundense.

Para uma melhor compreensão, porém, de como bamburristas, apesar de tudo, têm resistido ao longo dessas seis décadas de exploração da opala e, assim, construído uma identidade sociocultural, nos concentramos em alguns aspectos da lingua(gem) de que o grupo faz uso, mais precisamente no que definimos como usos linguísticos. Não pretendemos fazer aqui qualquer aprofundamento teórico acerca da linguagem e mesmo dos usos linguísticos, a não ser apresentar o que a literatura especializada, ou parte dela, já vem tratando há algum tempo sobre o assunto. Restringimo-nos na verdade, ao fato de que a riqueza da língua(gem) de bamburristas nunca tenha sido estudada cientificamente de forma aprofundada, pois, a nosso juízo, provavelmente estaria aí, um manancial inesgotável para a melhor compreensão não apenas do grupo em si, mas da sociedade pedrossegundense como um todo. Em nossa pesquisa de mestrado, porém, apesar de termos tido como foco não propriamente a linguagem, mas a identidade sociocultural de bamburrista, aquela nos pareceu de extrema importância, ganhando um subitem no corpo da dissertação. Detectamos nos usos linguísticos de que esses sujeitos lançam mão em seu cotidiano um dos constructos de sua identidade. Tal percepção advém, provavelmente, da nossa formação em Letras e, consequentemente, de nosso contato com a linguística.

2. A linguagem: alguma teorização necessária

A linguagem é a fronteira que separa os humanos dos demais seres animados. Não a linguagem em sua abrangência total, mas a linguagem articulada[1]. O envolvimento dos humanos com a linguagem é tal que esta confunde-se com a própria definição de vida. Em todas as épocas da história humana a linguagem articulada tem sido a construtora de realidade, de modos de viver.

Podemos estudar a linguagem sob dois enfoques diferentes. Linguagem como produto e linguagem como processo. Nossa opção é pelo segundo enfoque, na linha delineada, dentre outros por Eni Orlandi, ao tratar da questão. Para esta autora,

um estudo abrangente [...] da linguagem, é aquele que vai fundo na  sua natureza, ou seja, é aquele que perde menos de sua simplicidade. É aquele que ousa aceitar que não há hierarquias, não há categorias estritas, ou níveis que possam servir de suporte para explicitar o que não dá para explicitar nem simplificar o que não dá para simplificar, ou clarear o que, por natureza, se faz obscuro (ORLANDI, 1987, p. 146).

Estaria provavelmente aí uma das razões pelas quais, por décadas, os estudos gramaticais (prescritivos) desconheceram os usos linguísticos de grupos menos privilegiados socialmente, havendo tal interesse surgido tão somente quando tiveram início os estudos linguísticos (descritivos-explicativos).

Segundo Viott (2007), pelo fato de a língua ser social, a linguística precisa entender as relações entre língua e cultura, entre língua e classes sociais, e entre uma língua e outras línguas que estão em contacto com ela. Essas relações são importantes porque elas estão associadas a alguns fenômenos de grande interesse, como a variação e a mudança linguísticas.

Passou-se, assim, de um enfoque, que privilegiava certos status de uma gramática[2] de domínio de estratos privilegiados da sociedade. Em outras palavras, o discurso dos grupos socialmente desprestigiados não era, como ainda em grande medida não é, levado em conta.

Ora, se, como diz Orlandi (1987), no interior de uma mesma língua transitam diversos discursos[3], isto é, diversas maneiras de os diversos grupos sociais estabelecerem sua compreensão do mundo, é perfeitamente aceitável que os discursos sejam “estabelecidos a partir de suas condições de produção” e que o funcionamento discursivo é “a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante de um discurso determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas” (ORLANDI, 1987, p. 125). Ou, por outra,

o sentido é uma construção, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os tempos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta (SPINK, 1999, p. 41).

O que podemos dizer sobre a linguagem, compreendida aqui como o emprego da língua por um determinado grupo social, é que ela tem um caráter social. Tal percepção salta aos olhos de quantos se debruçam para estudá-la. A linguagem é recebida “totalmente elaborada” e somos obrigados a recebê-la “e a empregar assim, sem variações consideráveis” (ORLANDI, 1987, p. 7). Por seu turno, compreendemos língua como sendo “não somente um sistema de palavras; [...] implica uma certa maneira de perceber, de analisar e de coordenar [o mundo]” (ORLANDI, 1987, p. 7). Os usos linguísticos aparecem como maneiras específicas de reelaboração do mundo a partir de determinados grupos sociais, como trataremos mais adiante ao nos referirmos a bamburristas.

No interior de uma mesma língua transitam diversos falares, isto é práticas cotidianas concretas estruturadas a partir do discurso, isto é do “uso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo linguístico” (SPINK, 1999, p. 43), dos diversos grupos que compõem a sociedade. Os falares, línguas dentro da língua-mãe e os atos de fala, que são os falares em sua realização concreta, como veremos mais adiante. São fundamentais na construção da memória e da identidade do grupo social onde se realizam maneiras diversas de os diversos grupos sociais estabelecerem sua compreensão do mundo, por um lado. Para tanto, compreendemos fala como sendo manifestações textuais-discursivas para fins de comunicação na modalidade oral, uso da língua na forma de sons sistematicamente articulados e significativos, além de aspectos prosódicos e outros recursos expressivos situados no plano da oralidade, Marcuschi (2001).

Os termos discursos e falares requerem, a essa altura, uma caracterização mais detalhada. Se caracterizarmos os discursos como “estabelecidos a partir de suas condições de produção” (ORLANDI, 1987, p. 115), e dissermos que no interior de uma mesma língua transitam diversos discursos, e ainda que o que temos concretamente é “a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas” (ORLANDI, 1987, p. 125), então estabeleceremos que os falares de determinado grupo (línguas dentro da língua) alinhavam uma sintaxe grupal que posta em prática (e é sempre assim) contribui com a urdidura interna (se podemos dizer assim) da identidade sociocultural (e da memória) do grupo no contrapelo da disputa por legitimidade[4] com os demais grupos, na fronteira entre o nós e o outro.

No caso de bamburristas aqui tratados, os usos linguísticos dizem respeito às especificidades que estes fazem do uso da língua portuguesa, no bojo desta, de falares, utilizando-se de uma semântica própria, de um vocabulário específico com o qual elaboram uma sintaxe entranhada nas práticas de garimpagem[5] da opala.     


3. Diversidade de falares: minha pátria é minha língua

Uma língua pertence ao conjunto de pessoas que falam essa língua. O poeta português Fernando Pessoa chegou a dizer, como muita propriedade, que a língua portuguesa era sua pátria. O problema é quando há exilados da própria língua. Geralmente tal exílio se deve a questões extra-linguísticas, o que apenas reforça a necessidade de estudos linguísticos que contemplem o estudo da língua como um ser no mundo. Um estar aí. A diversidade linguística de bamburristas é tão grande quanto a de gemas de opala, mas ainda adormecida no subsolo da cultura pedrossegundense à espera de um estudo sério e completo o suficiente para que venhamos a ter, quem sabe, um mapa dos falares da região da opala e de seu entorno, a exemplo de algumas iniciativas de catalogação dos ecossistemas naturais e de sítios rupestres. Exemplos de estudos de envergadura que visam à catalogação de falares regionais há, contudo, pelo país, e certamente contribuem para questionar a discriminação linguística.

As diversidades de falares de uma região estão geralmente ligadas a migrações que por sua vez ligam-se a ciclos econômicos, sendo o ciclo da mineração um dos que mais contribuem com tal diversidade. No Brasil, por exemplo, há pelo menos dezessete línguas indígenas e todas sob ameaça de desaparecer. Baronas (2004), não por acaso, chama os falares de ecologia linguística, tal a sua riqueza.

Tal diversidade, contudo, não é respeitada e/ou estudada como deveria ser. Contra os falares populares tem havido ao longo do tempo um processo de violência simbólica no sentido bourdieuano do termo, penalizando esses falares e, consequentemente, os grupos sociais que deles fazem uso. Na verdade a intolerância linguística é uma das formas de intolerância, pois é evidente que

o uso da linguagem tem sido sempre fortemente marcado por intolerância e preconceitos, com o agravante de que a intolerância linguística é muito mais camuflada do que outras formas de preconceito. Assim, revistas, artigos racistas, acatam, sem problemas, textos intolerantes em relação a certos usos (PESSOA, 2008, p. 1)


Os discursos sobre a opala são múltiplos, pois percorrem toda a cadeia produtiva da gema, sendo que esta mesma cadeia é constituída por um segmento empresarial, formado por joalheiros, lapidários, mineradores e designers, que monopoliza não apenas os aportes financeiros destinados à extração, lapidação e comercialização da gema, como também se apropria de significados simbólicos que são midiatizados, constituindo-se em verdades incontestáveis, diante das quais bamburristas têm poucas chances de se contrapor, apartados (financeira e simbolicamente) que são desde logo após a extração da gema e dela mantidos à distância que financeira, quer simbolicamente. Resta-lhes, portanto, poucas alternativas para manterem-se unidos: a própria atividade garimpeira (impregnada fortemente pela precarização do trabalho) e, como amálgama dessa (mas aí, como contraponto à precarização), os usos linguísticos.

O discurso operado a partir do segmento empresarial é endossado e corroborado pelos apoiadores do Arranjo Produtivo da Opala – APL Opala[6], desde sua implementação, em 2005. Midiatisado, este discurso operado na prática por usos linguístico do segmento empresarial apropria-se da gema de opala concreta e simbolicamente, como alinhavamos em outras partes deste artigo. Tal apropriação (financeira e simbólica) por parte de empresários alimenta o mito de que Pedro II é a Terra da Opala e, a partir daí a gema brilha, tornando-se o centro de atenção da sociedade local (embora não tenha sido beneficiada financeiramente em mais de seis décadas de extração da gema) e de turistas (que já vêm impregnados pelo discurso midiático acerca da gema), como se fosse possível obter a opala sem bamburristas para extraí-la das entranhas da terra. É nesse ponto que os usos linguísticos de bamburristas emergem como resistência àqueles oriundos do empresariado e dos mass media, como veremos no próximo item.


4. Usos linguísticos e práticas identitárias de bamburristas

Podemos dizer, segundo Dina Luz Pessoa, que os usos linguísticos são determinados por seu caráter público e privado, sendo que o primeiro é regulamentado por leis e regras e estabelece a variedade possível desses usos. No limite do caráter público e do caráter privado é que a intolerância linguística é gerada, havendo a necessidade de compreendermos cientificamente como isso ocorre. De antemão, a exemplo do que ocorre com os ecossistemas naturais, o plurilinguismo aponta para possíveis respostas ao clima de hostilidade e de intolerância nessa área. Dessa forma,

o plurilinguismo impõe-se atualmente como um tema fortemente mobilizador. Para muitos, constitui uma proposta incontrolável para preservar a riqueza e a diversidade lingüístico-culturais em um mundo globalizado; para outros, não passa de uma utopia anti-uniformização em prol de grupos migratórios fadados ao desaparecimento ou ainda de um vetor de interesse político-econômico diversos (CIELLA, 2008).

A relação que hoje estabelecemos entre a ecologia e a linguística, relação na qual a segunda se apropria de termos e conceitos da primeira, fundamenta-se, sobretudo, na teoria dos sistemas[7], e apenas quer denotar o fato de que a língua é um sistema orgânico e altamente endoativo. É crescente o número de estudos que exploram a diversidade linguística vendo nela um caminho cheio de possibilidades e maneiras de estudarmos a diversidade das comunidades humanas sob diversos aspectos no que tange à linguagem e àquilo que lhe é fronteiriço.

Dentre os muitos elementos fronteiriços à linguagem, a identidade sociocultural das assim ditas comunidades carentes ou comunidades excluídas ou periféricas tem sido cada vez mais objeto de pesquisa. O Inventário Nacional da Diversidade Linguística[8] (INDL) é um dos principais estudos nesse campo e tem ampla importância por relevar nossas práticas identitárias, pois “estas línguas são constitutivas da história e da cultura do Brasil e devem ser entendidas como referências culturais da nação, tal qual ocorre com outros bens de natureza material ou imaterial” (apud VIOTT, 2007, p. 1).





5. Usos linguísticos de bamburritas

Não é propósito desse artigo, relembramos, esmiuçar usos linguísticos dos bamburristas, nem listá-los em sua complexidade, dado o pouco espaço de um artigo e a complexidade do tema. Nem ao menos iremos aqui teorizar desnecessariamente acerca de pontos da linguística sabidamente conhecidos e já devidamente tratados em outros lugares. Mesmo porque o material gerador desse artigo não trata especificamente de usos linguísticos de bamburristas, reiteramos, mas de como esse grupo social constroi sua identidade sociocultural a partir de algumas ferramentas simbólicas das quais lança mão.

A questão que se apresenta nessa oportunidade encontra-se muito mais à espera de alguém que se debruce sobre a mesma e, efetivamente, consiga lançar alguma luz sobre o mundo linguístico de bamburristas e, de modo especial, sobre os usos que fazem da língua(gem). Nossa intenção é tão somente chamar atenção para o fato de que tais usos são um dos principais, senão o principal, componentes construtivos de sua identidade sociocultural.

 Inicialmente alertamos para o fato de que a maioria dos bamburristas de opala do município de Pedro II, cerca de noventa por cento, pratica a agricultura de subsistência[9] nos meses de chuva, entre dezembro e março. Com isso queremos dizer que tais bamburritas exercitam usos linguísticos praticados pelo componente de práticas de campesinato[10] e, ao mesmo tempo, usos linguísticos restritos ao ambiente de garimpo[11] de opala. Não restando, porém, dúvidas quanto ao fato de que os componentes do grupo se veem como pequenos garimpeiros (bamburristas) e as práticas de campesinato têm menor importância para eles, uma vez que se reconhecem como garimpeiros.

De uma maneira geral a gama de expressões empregada por bamburritas gira em torno das práticas garimpeiras, com seus afazeres, sua ritualidade, durante o tempo em que estão trabalhando; mas posteriormente também, quando bamburristas se encontram à noite na calçada da cooperativa de garimpeiros. Vocábulos que fazem referências a ferramentas e seus processos de uso delineiam campos semânticos, vocabulário e uma sintaxe própria. Do ponto de vista da funcionalidade, podemos dizer que as ferramentas são concreta e simbolicamente extensões dos corpos e mentes de bamburristas.

Nesse sentido, os bamburristas são mostrados como máquinas humanas conjugadas às ferramentas, extensão naturalizada de seus braços, cuja função é extrair a gema bruta das entranhas da terra. Seus corpos envoltos em roupas velhas, lenços cobrindo-lhes o rosto, chapéus de abas longas para barrar os raios do sol inclemente, posam [referência a um catálogo de jóias de opala] ao lado de um montículo de gemas igualmente rotas porque ainda envoltas pelo barro sob o qual descansavam antes (LIMA, 2008, p. 171).


Os usos linguístico, com freqüência fazem menção às difíceis condições de trabalho de bamburristas. Mais uma vez, lembramos que a situação de precariedade[12] de bamburristas não é exceção, mas regra no capitalismo. Eclea Bosi chama nossa atenção para o fato de que a estética neocapitalista tem “desprezo pelas coisas gastas, usadas, como marcas do trabalho e da vida” (BOSI, 2003, p. 167), instaurando um consumismo degenerador e insano que vai de encontro ao conceito de sustentabilidade[13]. Nada mais desgastado na cadeia produtiva da opala (CPO) do que as ferramentas de bamburristas e, paralelamente, são os bamburristas os sujeitos fisicamente mais sacrificados, aqueles sobre quem o ônus das horas de trabalho deixam suas marcas e cicatrizes, quando não a morte.
Os usos linguísticos de bamburristas revelam a evocação do vivido (histórias de bamburristas, acidentes, mortes e momentos felizes, dificuldades cotidianas, o descaso das autoridades para com o grupo; e resistência ao longo de seis décadas). Ao mesmo tempo diagnosticam o presente na medida em que referências ao garimpeiro, ao trabalho no garimpo, ao coletivo dos bamburristas nos servem de temáticas possíveis para a construção do mundo do garimpo e, consequentemente, de sua identidade (e da memória).

Outro aspecto a ser considerado nos atos de fala dos bamburristas é o fato de que estes lidam com a terra, no sentido pragmático (ao exercerem a garimpagem) e simbólico (usos linguísticos), durante boa parte de suas vidas, quer como bamburristas, quer como campesinos. No primeiro momento extraindo gemas do subsolo, no segundo momento plantando e colhendo. Ambas as atividades concentram certo grau de incerteza, pois são dependentes daquilo que bamburristas definem como sorte, o acaso a seu favor.

É preciso sorte para encontrar a gema rara que se esconde dos olhos de quem a procura, ofuscada pela areia, assim como também é preciso sorte para que tenham um bom inverno, que é como eles denominam a estação chuvosa. Ambas as atividades podem ser vistas como matrizes geradoras de uma semântica, de uma sintaxe e de uma morfologia que se tocam em alguns pontos, delineando e sendo delineadas por discursos que se concretizam em atos de fala, em atos linguísticos, como já dito aqui, em que o desconhecido, as intempéries do clima e da sorte são amainadas, domesticadas e, finalmente, enquadradas e rotinizadas, pois, do contrário, seria impossível que bamburistas e mineradores em geral pudessem desenvolver a contento suas práticas garimpeiras, como observa Barbosa, 1991.

6. A linguagem, essa faca de dois gumes

Nossa pesquisa revelou que a maneira como bamburristas lidam com a linguagem revela algumas coisas interessantes, como o fato de, dependendo de sua avaliação sobre o quanto perdem ou ganham simbolicamente ao fazerem uso da linguagem, de atos linguísticos, se dirigem a seus interlocutores. Dessa forma,

muitos se expressam, com relação ao ato de garimpar a opala, de forma instigantemente metafórica, como sendo, tal ato, “uma cachaça”, “um vício”, “um jogo”. O emprego desses vocábulos pelos atores sociais, dependendo do lugar, e do momento, poderá comprometê-los perante terceiros, principalmente quando parte de lideranças garimpeiras, de quem se espera um discurso mais sóbrio. Contudo, [...] esse jeito de ser é parte das identidades socioculturais desses bamburristas (LIMA, 2008, p. 54).

            A palavra opala, por exemplo, que morfologicamente significa pedra preciosa, dependo do sentido que bamburristas querem imprimir ou causar em seu interlocutor pode significar mulher, coisa difícil, sorte, azar, dificuldade, dinheiro, etc. Bamburristas fazem uso da linguagem para delimitar, filtrar o que não-bamburristas devem ou não saber, compreender acerca dos mistérios da opala, das coisas escondidas debaixo da terra, das sabedorias da terra, como diz esse bamburristas experiente:
Eu lhe dizer que não tem jeito, não tem jeito. O sujeito trabalha na montoeira, um cava, tira uma, duas, três pedras, aquilo que ele tira a quarta,... Se tem mesmo pedra, pode ficar na certeza que passou. Aí vai peneirar, dá outro bocado. Se vai lavar, dá outro bocado. Não tem fim. Você tem de jogar porque vai ter que ficar, porque todo minério tem o pagamento da terra[14]

Nesse sentido, podemos dizer que lançam mão de uma gíria de bamburistas, esta mesma rica e diversificada, assimilando novos termos e expressões ligadas geralmente ao processo de extração e manuseio da gema.


7. Conclusão

Embora a exploração de gemas de opala no município piauiense de Pedro II venha ocorrendo nas seis últimas décadas, bamburristas, grupo social constituído por cerca de seiscentos homens com idade entre dezoito e setenta e cinco anos, situados na base da cadeia produtiva dessa gema, não têm sua legitimidade de sujeitos protagonistas reconhecidos quer pelos demais sujeitos da cadeia, quer pela sociedade local. Bamburristas, contudo, vêm construindo sua identidade sociocultural de diversas formas, lançando mão de vários artifícios legítimos, com os quais se identificam. O uso linguístico é um dos elementos centrais na construção de sua identidade sociocultural.  










Referências
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[1] Diz-se da linguagem simbólica, como a concebe Strauss, 1984.
[2] Empregamos esse terno no sentido lato, isto é como copus expressivo-comunicacional de certo estrato social.
[3] Para Orlandi (1987) discurso é um conceito teórico e metodológico.
[4] Compreendemos por legitimidade (legitimacy) em se tratando de política pública (no caso política pública de diversidade linguística) voltada para a promoção de grupos excluídos socialmente o conceito de Bo Rothsstein: “[No que tange à] legitimidade política de uma política pública, (...) seu sucesso ou fracasso depende da] confiança do grupo [a]o qual é dirigida, ou para a grande maioria dos cidadãos. Por exemplo, muitos programas requerem o consentimento (ou inostilidade, pelo menos) do grupo que foi designado para ser implementado prosperamente. (ROTHSTEIN, 1998, p. 72)” (Parêntese no original).
[5] Diz-se do cabedal de conhecimentos necessários à extração da gema de opala do subsolo, assim como da experiência acumulada e repassada por bamburristas mais experientes aos novatos.
[6] O APL Opala foi instalado, oficialmente, no município de Pedro II em julho de 2005. O projeto do arranjo foi renovado em abril de 2007 com validade até 2009, pelo MME - Ministério das Minas e Energia e MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia. Além das duas instituições públicas citadas, acima, ambas componentes do conselho consultivo do APL Opala, fazem parte do arranjo as seguintes entidades: a Fundação de Desenvolvimento e Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão – FUNDAPE – PI; como interveniente/co-financiador o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Piauí – Sebrae; e como instituições colaboradoras: o Centro de Tecnologia Mineral - CETEM, o Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, o Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos – IBGM, o Serviço Geológico do Brasil-CPRM, a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Econômico, Tecnológico e Turístico do Estado do Piauí– SETDETUR, a Cooperativa dos Garimpeiros de Pedro II – COOGP, a Associação dos Joalheiros e Lapidários de Pedro II – AJOLP (conforme convênio FINEP nº 3686/04), e a Associação de Produtores de Opala do Piauí – APROPI, esta, criada em novembro de 2007. Outras instituições como o Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CREA, a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais – SEMAR, o Banco do Nordeste do Brasil – BNB, e a Companhia de Desenvolvimento do Piauí – COMDEPI. Em fevereiro de 2009 teve início a terceira etapa prevista pelo APL: foi criada mais uma entidade encarregada de criar e difundir a identidade gemológica da opala de Pedro II.
[7] Teoria proposta em meados de 1950 pelo biólogo Ludwig von Bertalanfly que se contrapôs ao reducionismo científico.
[8] O Inventário Nacional da Diversidade Lingüística (INDL) é instrumento de levantamento e registro das línguas faladas pelas comunidades lingüísticas brasileiras. Estas línguas são constitutivas da história e da cultura do Brasil e devem ser entendidas como referências culturais da nação, tal qual ocorre com outros bens de natureza material ou imaterial (IPHAN, 2008).
[9] Tipo de agricultura que consiste fundamentalmente em consumir boa parte do que os campesinos produzem, havendo a venda do excedente, quando necessário.
[10] De fato, configura-se um conflito entre a lógica de mercado da qual comungam AJOLP, APROPI e demais entidades e instituições participantes do arranjo (inclusive, de certa forma, a COOGP) e a lógica garimpeira (BARBOSA, 1991) dos bamburristas, no âmbito tanto da cadeia produtiva quanto do APL Opala; conflito esse mantenedor da figura dos bamburristas como sujeitos socialmente subordinados e estigmatizados (GOFFMAN, 1982) isto é, nas mesmas condições, ou algo muito próximo, do eclipse da categoria, anterior à implementação do arranjo produtivo (LIMA, 2008, p. 188).
[11] Tomamos o termo garimpo, aqui, além do registro geográfico isto é, lugar onde bamburristas extraem a opala, também no sentido simbólico, uma vez que o termo é gerador de uma infinidade de situações de comunicação no cotidiano de bamburristas independentemente destes se encontrarem fisicamente ou não no garimpo.
[12] “formas precárias de inserção no mercado de trabalho, como os baixos salários, o desemprego, os empregos temporários, a alta rotatividade, a assustadora e crescente informalização etc” (FAGNANI, 2001, p. 120) são as partes mais visíveis do estado de precarização que assola a classe trabalhadora brasileira (LIMA, 2008).
[13] O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades. Em outras palavras, é o equilíbrio na convivência entre o homem e o meio ambiente . http://www.blogbrasil.com.br/conceito-de-sustentabilidade/ (2008).
[14] Sr. Benedito Pereira, bamburrista, 65 anos, Pedro II. Entrevista concedida a Ernâni Getirana de Lima, em 20/10/2007.




TENDA DA CRUVIANA

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