segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

VISIBILIDADE QUE INVISIBILIZA: o discurso do catálogo de jóias criado em 2007 pelos apoiadores do Arranjo Produtivo Local da Opala do município de Pedro II – PI.




Ernâni Getirana de Lima-UESPI


RESUMO:

O município de Pedro II – PI é o segundo exportador mundial de gema de opala, atividade, contudo, insalubre para os mais de trezentos garimpeiros bamburristas locais. Estes, além de não ficarem com a parte substancial do bônus econômico e simbólico do comércio de opala, vêm padecendo, ao logo das últimas seis décadas, de um histórico processo de invisibilidade social. O artigo faz uso do método de análise de discurso para analisar o catálogo de jóias de opala laçando em 2007 pelos apoiadores do Arranjo Produtivo Local da Opala, mostrando que a reprodução dessa invisibilidade é endossada por aqueles que deveriam ajudar a combatê-la.

PALAVRAS - CHAVE: catálogo, bamburristas, invisibilidade social, análise de discurso.


ABSTRACT:

The municipality of Pedro II - PI is the world's second exporter of opal gem, activity, however, unhealthy for more than three hundred local miners bamburristas. These, in addition to not get the substantial part of economic and symbolic bonus of trade of opal, they are suffering, for the last six decades, a historical process of social invisibility. The article, makes use of the method of analysis of discourse to examine the catalog of opal jewelry edited in 2007 by supporters of the Local Production System of Opal, showing that the reproduction of that invisibility is endorsed by those who should help fight it.

KEYWORD: catalog, bamburristas, social invisibility, analysis of discourse.


INTRODUÇÃO


A ensaísta norte-americana Sunsan Sontag disse da relação entre fotografia e legenda que “todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou deturpadas por suas legendas” (2003: 14). O que nos leva a concluir que as fotografias não falam por si mesmas. Ou que pelo menos não falam tudo. Nossa intenção não é a de discutir teorias acerca da imagem ou da fotografia, mas, com base na teoria de análise de discurso francesa (Orlandi (1987)) procurar demonstrar que os apoiadores do Arranjo Produtivo da Opala - APL Opala corroboram com o processo de invisibilidade social do qual são vitimizados os garimpeiros bamburristas de opala do município de Pedro II-PI. Para tanto, analisaremos o texto do catálogo Pedro Segundo Pedras de Primeira, lançado em 2007. Traçaremos, inicialmente, um breve panorama das práticas garimpeiras destacando-se, aí, as práticas garimpeiras opalinas. Num segundo momento, adentraremos propriamente à análise do catálogo, para, num terceiro momento, contextualizá-lo dentro da política de inserção produtiva do Arranjo Produtivo Local. Concluímos, por fim, que os apoiadores do APL Opala contribuem, paradoxalmente, para o processo de invisibilidade social dos bamburistas como grupo social marginalmente inserido na cadeia produtiva da opala.




1 PRÁTICAS GARIMPEIRAS OPALINAS

A relação entre humanos e minerais é antiga e se estende a todas as civilizações conhecidas. O elemento mineral, desta forma, tem fornecido a base material sobre a qual civilizações são erigidas e constroem seus mitos e lendas[1]. A mineração e a garimpagem são, provavelmente, duas das mais antigas e difundidas atividades de trabalho praticadas pelos seres humanos no tempo e no espaço. Dentre as de garimpagem, a de gemas de opala[2] é uma das mais raras, restringindo-se sua ocorrência, sobretudo, à Austrália e ao Brasil. Neste último o município piauiense de Pedro II[3] sobressai-se como o segundo maior produtor mundial da “pedra da sorte”, uma das inúmeras denominações[4] da opala (do sânscrito upala, pedra preciosa).
Os primeiros achados opalinos em Pedro II datam da década de 1930, quando um morador de uma comunidade local teria encontrado uma “pedra esquisita, leitosa e que faiscava”, segundo palavras do mesmo. Havendo posteriormente levado a tal pedra a um chefe político local, este, após consultar geólogos em Teresina, capital do Estado do Piauí, teria dito tratar-se de opala (GALVÃO, 2001).
A primeira fase da exploração da gema compreende o período entre 1950 a 1970, fortemente marcado pela informalidade e improvisação das atividades de garimpagem, com o emprego de técnicas rudimentares e de ferramentas artesanais[5]. A segunda estende-se até o final da década de 1980 e culminou com o abandono dos garimpos por mineradoras estrangeiras, sobretudo australianas. Esse período é marcado também pelo contrabando desenfreado da gema e pela agressão ao meio ambiente. Finalmente a terceira e atual fase é marcada pela ascensão econômica e simbólica dos joalheiros e lapidários locais[6]. Ao longo de seis décadas de exploração da opala no município, um grupo social situado na base da cadeia produtiva, porém, tem sido econômica e socialmente ignorado, vitimizado por aquilo que denominamos de invisibilidade social[7]. 

2 O CATÁLOGO

2.1 AS TAIS FOTOGRAFIAS

Abrimos um parêntese para lembrar que a relação da cultura ocidental com a imagem é milenar. A fotografia, como uma das técnicas de fixação da imagem surge na primeira metade do século 19 e não foi a descoberta de uma única pessoa, mas resultado do acúmulo de experiências, ao longo do tempo, de alquimistas, físicos e químicos sobre a ação da luz. Aristóteles fez observações sobre a luz quando da ocorrência de eclipses. No século 11 os árabes construíram a câmara escura, princípio da fotografia como a conhecemos hoje. Em 1802, Thomas Wedwood impregna imagens sobre couro branco, mas não consegue fixá-las, o que viria a acontecer apenas em 1777, com Karl Wilhelm Scheele. De modo resumido, podemos citar, na seqüência desses inventores da fotografia, Nicéphone Niépce e, sobretudo, Louis Daguerre, que em 1831 descreveu-a para a Academia de Ciências de Paris, tornando-a acessível ao público, para desespero dos pintores que a tomavam como rival da pintura. Não foi o que aconteceu, como sabemos.
Dito isso, esclarecemos que não é nossa pretensão nesse artigo analisar as fotografias de garimpeiros bamburritas do catálogo do ponto de vista da teoria da fotografia, ou da imagética, por assim dizer, mas apenas fazer uma rápida referência a elas devido ao suposto imbricamento existente entre fotografias e texto em um catálogo. É que embora o objetivo, aqui, seja tratarmos da linguagem verbal, faremos uma sucinta descrição das fotografias por compreendemos que essas compõem com os textos um todo articulado que, em última instância, termina, como argumentamos, por invisibilizar aqueles a quem deveria evidenciar, os bamburristas.
 O catálogo em questão, Pedra Primeira de Pedro Segundo trata-se de uma peça publicitária de fino acabamento gráfico lançada em janeiro de 2007 pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Piauí, Sebrae – PI, um dos principais apoiadores do Arranjo Produtivo Local da Opala – APL Opala[8]. O catálogo possui dimensões de 21 por 21 cm e contém vinte e duas páginas, das quais três com textos sobre os garimpeiros bamburristas[9] e seis fotos coloridas desses mesmos bamburristas. As  demais fotografias são de jóias de opala, havendo, ao final, a fotografia de um ourives local e outra de sua mão manuseando um maçarico. Os demais textos fazem alusão às jóias. Na segunda capa há uma citação atribuída a um velho garimpeiro local: “O dia do garimpeiro é sempre o dia de amanhã: se ele não encontra a pedra hoje, amanhã encontra”.[10]  Na terceira capa encontram-se os logotipos dos realizadores e apoiadores do catálogo, entidades e instituições participantes do APL Opala. Os textos são de autoria de Maria Emilia Kubrusly e as fotografias com bamburristas de Rodrigo Viana.
Todas as fotografias de bamburristas, com exceção de uma em close, os apresentam em plano geral[11], com suas roupas de trabalho e botas surradas, camisas de mangas compridas, calça comprida, lenço no rosto e chapéu de abas longas. A primeira fotografia (em plano geral) os mostra colados ao garimpo, com seus montes de areia revolta, as montoeiras[12]. É preciso algum tempo para percebermos a presença de homens ali, pois eles aparecem camuflados contra o plano de fundo, o chão, uma vez que o tom de suas roupas aproxima-se do do ambiente opalino. Uma das fotografias mostra um bamburrista operando uma peneira. Trata-se da única fotografia que os apresenta quase em plano aberto. Não vemos, porém, seu rosto. Este se encontra encoberto por um lenço atado a um chapéu de palha que traz à cabeça. Na seqüência as demais fotos ou mostram (escondem) bamburristas em túneis escuros ou mostram suas mãos (apenas estas) em close tocando as gemas de opala. Haveria a possibilidade de objetarmos que as fotos com bamburristas não poderiam ser diferentes, uma vez que um dos objetivos da equipe responsável pelo catálogo, provavelmente, foi de mostrá-los trabalhando. Concordamos com isso, porém (e por que não?) poderia haver uma única fotografia que os mostrassem como pessoas[13], não apenas como trabalhadores, homens acoplados às ferramentas. Poderia haver uma fotografia coletiva, com todos eles de “rosto à mostra”, como se diz localmente.
Nesse sentido, o catálogo (como discurso) possui uma interface verbal e uma não-verbal articuladas pela equipe que o criou, estabelecendo uma relação dialógica (BACKTIN, 1998) entre ambas interfaces. Nesse ponto voltemos a Susan Sontag que ao se referir à relação entre fotografia e legenda chama nossa atenção para o fato de que toda imagem é um convite ao olhar e, às vezes, evitamos as legendas para não sofremos, pois estas racionalizariam as imagens exaurindo-as do devaneio a que somos levados ao observarmos qualquer imagem.
O catálogo Pedra Primeira de Pedro Segundo, lançado em 2007 pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae – PI, nas quais bamburristas[14] são retratados em seis fotografias (12,5 % do total de páginas) que os mostram trabalhando no garimpo Boi Morto[15]. Em nenhuma delas, porém, seus rostos são mostrados. Ao contrário, eles aparecem envoltos em lenços e chapéus de abas largas que lhes cobrem as feições, as expressões faciais. Assim, os corpos fotografados em plano aberto ou mesmo mais aproximados (plano médio), executam atividades de trabalho de extração e peneiragem da opala.
O próprio nome do catálogo (numa composição que lembra um texto concretista[16]) é um jogo semântico (e visual) entre quatro palavras[17]: pedra/Pedro e primeira/Segundo. Uma das leituras possíveis seria a de que as palavras pedra e Pedro (feminino e masculino) denotam a idéia de que a opala é feminina, faz-se, portanto, uma acepção à figura da mulher[18] e Pedro à figura do garimpeiro que a ‘conquista’. Não podemos esquecer de que a palavra pedra remete ao reino mineral, enquanto que a palavra Pedro remete ao reino animal e, mais precisamente, ao lócus da cultura, do humano. O que, por sua vez, pode denotar a ação de Pedro (cultura) sobre pedra (natureza). Do ponto de vista da cultura ocidental cristã, a frase atribuída a Jesus Cristo “Pedro, Tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha igreja (...)” (MATHEUS 16: 16-17), centraria na figura do garimpeiro o eixo principal a partir do qual a opala (reino da natureza) adentra ao mundo da cultura. O garimpeiro como fundamento, base desse processo de culturalização[19] da pedra e, paradoxalmente, ao mesmo tempo de forma cruzada, da naturalização do homem. No entanto, a ‘pedra’ é que está em primeiro lugar, desde o início. É, portanto, do binômio a parte mais importante. Já nesse ponto pode-se pressentir o início do processo de apagamento da figura do garimpeiro. Pode-se objetar que não haveria oposição entre as palavras ‘primeira’ e ‘segundo’, mas há. Como parece lógico, a expressão ‘pedra primeira’ nasce da expressão ‘Pedro Segundo’. E mesmo que digamos que ‘Pedro Segundo’ está aí como lugar da opala, terra da opala, logo como ‘procedência’, a expressão ‘pedra primeira’ opõe-se à expressão ‘Pedro Segundo’, embora mantenha a idéia de ‘pertencimento’. Ou seja ‘pedra primeira’ é a primeira dentre as demais pedras, mas é também ‘primeira’ no sentido de ‘pedra’ mais importante do que ‘Pedro’, pois é o que o assenta (tanto ‘biblicamente’ como geologicamente, no limite). Além do mais, o fato de ter-se alterado a grafia do nome do município de ‘Pedro II’ (em algarismo romano) para ‘Pedro Segundo’ (numeral ordinal) reforça a idéia (involuntária, claro) de, por semelhança e contigüidade, deixar escapar tal oposição. Outro reforço a essa oposição (involuntária) é o aspecto gráfico: a palavra ‘primeira’ aparece escrita logo acima da palavra ‘segunda’, assim como a palavra ‘pedra’ aparece escrita logo acima da palavra ‘Pedro’.
Se levarmos em conta que o nome do município é uma homenagem ao Imperador D. Pedro II, por deslocamento poético a expressão ‘pedra primeira’ poderia, então, ser entendida como a pedra ‘preferida do imperador’. Ainda aqui boa parte da idéia de ‘primeira’ se mantém. O imperador a preferiria às outras. Nesse caso, o homem (personificado, agora, na figura não mais do garimpeiro, mas na do imperador) exerce seu ‘poder de escolha’ e ‘escolhe’ simbolicamente a opala. A opala sendo ‘escolhida’ dentre as demais pedras ‘pelo imperador’, torna-se, obviamente, objeto de admiração, objeto de desejo ‘de todos’. O prestígio da figura do imperador é ‘transmitido’ à pedra[20].

2.2 O texto propriamente dito

O texto propriamente a ser analisado tem como título ‘Por trás da jóia, por baixo da terra’. Como podemos ver, esse título mantém o clima concretista inicial do título do catálogo. O texto é constituído de nove parágrafos, dos quais apenas os que tratam diretamente dos garimpeiros serão abordados aqui.  Primeiro parágrafo:
A pedra que reluz, solitária, no engaste perfeito do anel carrega uma história e traçou um caminho difícil de imaginar, diante da jóia pousada na maciez do estojo, sob as luzes da vitrine em que se expõe. Antes de chegar à lapidação e à joalheria, a opala precisa ser achada pelos heróis destas histórias: os garimpeiros de Pedro II. São cabras destemidos, que não hesitam em descer quase vinte metros num poço terra adentro à procura do veio luminoso encravado na argila, ou passar o dia sob o sol do sertão vasculhando, peneirando, lavando rejeitos (terra, pedra, cascalho) da mina, em busca dos preciosos fragmentos da opala” (CATÁLOGO ...2007 :16). (Parêntese interno no original).

Ao dizer que a opala precisa, antes de tudo, “ser achada pelos heróis destas histórias” o catálogo apresenta os bamburristas como seres especiais, não como trabalhadores Ora, essa é a primeira das muitas negações (invisibilizações) dos bamburristas. Compará-los a heróis é pô-los num pólo oposto ao de trabalhadores, pois os heróis são seres que ao se encontram numa posição intermediária entre homens e deuses devem realizar tarefas fora do alcance dos simples mortais. Atualmente a mídia tende a heroicizar algumas profissões como as de bombeiros e médicos, dentre outras, ressaltando o fato de que “colocam o interesse dos outros em primeiro lugar” (BATESTIN, 2008: 1). Por isso os bamburristas são descritos como “cabras destemidos, que não hesitam em descer quase vinte metros num poço terra adentro à procura do veio luminoso (...)”. Ou seja, ‘cabras destemidos[21]’ (corajosos, machos), seria o correspondente na linguagem do caboclo de ‘heróis’.  Podemos, ainda fazer uma leitura dessa passagem como uma tentativa de folclorização[22] dos bamburristas, uma vez que sua atitude de  ‘destemidos’ é de arriscarem a própria vida. Os bamburristas ‘não hesitam’ em arriscar a própria vida em busca do ‘veio luminoso’ e isso os inscreve no folclore local como corajosos.
Passemos ao segundo parágrafo:
Quase todos [os bamburristas] garantem que o grande barato é encontrar a pedra, melhor que vender, ganhar e gastar o dinheiro. E são pessoas que dependem da atividade para pagar as contas do dia-a-dia, encher a panela da família, a maioria alternando o garimpo no verão (época da estiagem) com a lavoura no inverno (período chuvoso). Mas se rendem ao prazer e ao fascínio de desbravar a terra em busca da preciosa pedra (CATÁLOGO ... : 16). (Parêntese interno no original).

            Evita-se, dizer no texto que os bamburristas são pobres. Usa-se o eufemismo “e são pessoas que dependem da atividade para pagar as contas do dia-a-dia, encher a panela da família (...)” para em seguida dizer que eles “se rendem ao prazer e ao fascínio de desbravar a terra em busca da preciosa pedra”, quando, na verdade o fazem por pura necessidade de sobrevivência. Ao ganharem, em média, R$ 16, 00 (dezesseis reais) por dia, para sustentarem uma família composta por cerca de cinco, seis pessoas, vemos que, nesse contexto, ‘fascínio’ e ‘prazer’ estão deslocado do contexto real de precarização do trabalho dos bamburristas (ANTUNES, 2006), e por isso silenciam a real situação social destes. Ou seja, ‘fascínio’ e ‘prazer’ vêm completar o eufemismo que silencia o drama dos bamburristas. Porque se é verdade que o sujeito reproduz o que pode ser dito e silencia o que não pode dentro de certa formação discursiva (ORLANDI, 1987), como acontece com os bamburristas em relação ao Arranjo Produtivo Local da Opala, numa estratégia de sobrevivência dos mesmos na arena social do Arranjo, também é verdade que, do ponto de vista de quem elaborou o texto do catálogo a estratégia é eclipsar qualquer desconforto pictórico/semântico que faça lembrar a situação de precarização da atividade extrativa da opala por bamburristas pois,

levando-se em conta que a linguagem é basicamente dialógica, podemos dizer que ao silenciar sobre algo, o locutor prende o interlocutor no quadro discursivo limitado por esse silêncio. Esse compromisso instituído pelo enunciador poderá, ou não, ser cumprido pelo interlocutor” (ORLANDI, 1987:264).
           
            Próximo parágrafo:

São muitas as versões para descoberta da primeira destas pedras: um cara estava caçando um peba (tatu) e enfiou a mão na toca do bico, onde encontrou uma opala; outros garantem que foi um lavrador, que desenterrou uma gema ao preparar a roça para plantar mandioca; outras dizem que foi um cachorro perseguindo um preá, ou, ainda, alguém que fincava a cerca no chão, ou abria um buraco para plantar uma bananeira, e por aí vai (CATÁLOGO ... : 16-17). (Parêntese interno no original).

            Mais uma vez, a foclorização é a tônica desse parágrafo.     De qualquer forma o início da exploração da opala está inscrito no acaso. Não foi algo planejado, pensado. A atividade  tem início de forma aleatória. Descrita dessa forma a atividade garimpeira aparece como uma atividade de não-trabalho, algo marginal, que não conta, que não deve ser levada a sério. Contudo,

a organização dos trabalhadores do garimpo, porém, na Cooperativa de Garimpeiros de Pedro II, criada há cerca de 5 anos, reduziu as incertezas, conforme explica um dos fundadores e presidente da COOGP, Antonio Sepúlveda Almendra Sobrinho, o Toinho: ‘O garimpo é uma aventura, um vício que a gente nunca quer abandonar, mas, com a formação da Cooperativa, passamos a ter mais controle da garimpagem e eliminamos os atravessadores’, comemora, esperando que cada vez mais garimpeiros se tornem cooperados (hoje são cerca de 80) (CATÁLOGO... : 17) ( Aspas internas no original).

            O parágrafo acima prepara, assim, o espaço para sedimentação do Arranjo produtivo. A fala do presidente, ao mesmo tempo em que diz ser o garimpo ‘uma aventura’, ‘um vício’, cita a criação da cooperativa como um marco redutor de incertezas da atividade. Contudo, o espírito de cooperativismo não faz parte da índole garimpeira (BARBOSA, 1991). O que nos leva a dizer que, nesse sentido a Cooperativa de Garimpeiros de Pedro II-COOGP já nasce fragilizada, a exemplo de sua antecessora, em 1982.
            Inúmeras são as histórias sobre a opala. O catálogo procura pinçar algumas delas, de forma genérica e as contrasta com a visão dos técnicos, que só vêem nessa manifestação identitária de bamburristas o viés exótico, o conhecimento popular, portanto digno de riso:


Relatos de opalas de 4 quilos, pedras de qualidade superior que permitiram a compra do terreno e a construção da casa rendem horas de conversas com os garimpeiros de Pedro II, assim como os casos fascinantes que todos contam e que se equilibram no limiar da realidade. A maioria garante que já viu o acender de fogos durante a noite, que se apagam sozinhos, da mesma forma que incandesceram, e juram: pode cavar no local onde a chama ardeu que vai ter opala. Engenheiros e técnicos da área de mineração e geologia sorriem, céticos, diante destas histórias, assim como todos que ouvem os casos de assombrações que habitam as minas, revelando-se nas raras noites em que é preciso dormir no local para vigiar. Verdade ou não, esta magia associada ao garimpo da opala serve apenas para tornar ainda mais fascinante e misteriosa esta gema de múltiplos brilhos e cores (CATÁLOGO ... : 17).


Quando o texto, então, vê alguma qualidade nessas histórias, o mérito é da opala, não dos bamburristas. Há, assim, um deslocamento do homem para a gema, eclipsando aquele em detrimento desta, pois
do  ponto de vista da análise do discurso, o que importa é destacar o modo de funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é integralmente lingüístico, uma vez que dele fazem parte as condições de produção, que representam o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso (ORLANDI, 1987:117).

Na abertura do catalogo Pedra Primeira de Pedro II a fala do superintendente do Sebrae - PI  já antecipa a visão dos organizadores do catálogo:
a manifestação de opala no Piauí – pedra de reconhecida beleza e de grande variedade de cores – é fator de regozijo não apenas nas localidades onde o mineral ocorre, Pedro II e Buriti dos Montes, mas em todo o Estado, especialmente no coração de cada homem e cada mulher que por aqui habita” (SEBRAE, 2007:5).

Percebemos que a partir da descrição física da opala “pedra de grande beleza e variedade de cores” (que mantém o erro de dizer que se trata de uma ‘pedra’, ao invés de ‘gema’), o superintendente ajuíza um valor simbólico: “[a opala] é fator de regozijo (...) [não apenas para as pessoas dos municípios onde é encontrada, mas] em todo o Estado, especialmente no coração de cada homem e cada mulher que por aqui habita” (CATÁLOGO ..., p. 5), e, com isso, desloca o foco do bamburristas para a opala. O que ocorre ao longo de todo o catálogo.


CONCLUSÃO

O mundo da opala e, em conseqüência, o mundo dos bamburristas é um mundo povoado pela palavra. Bamburristas falam em demasia, nos momentos de folga no garimpo, ou quando estão em grupo à noite na sede da cooperativa e isso tem importância na construção de sua identidade sociocultural[23]. A figura, porém, de um bamburrista destoa em muito da imagem de uma gema de opala lapidada e posta à venda. Enquanto bamburristas são ocultados nas fotos e em textos, a gema de opala é excessivamente fotografada e decantada em versos. O que seria um espaço para visibilisá-los  termina tendo  efeito contrário.



REFERÊNCIAS:

ANTUNES, R. As formas contemporâneas de trabalho e a desconstrução dos direitos sociais. In: SILVA, M.O.S. Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil contemporâneo. São Paulo: Cortez, MA: FAPEMA, 2006, p. 41-51;
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988;
BARBOSA, L. A ética do desempenho nas sociedades modernas. 4ed.  Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999;
BATESTIN, M. O herói o seu dever moral: o que ele é? Porque ele se torna um? Disponível em: < http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/533177>. Acesso: 26/10/2008;
CATÁLOGO PEDRA PRIMEIRA DE PEDRO SEGUNDO. Sebrae, Teresina, 2007;
DANTAS, A. M. Organizando a produção audiovisual. Disponível em: < http://www.mnemocine.com.br/cinema/principindex%20.htm>
GALVÃO, M.T.M.A. A opala nossa maior riqueza. In: Pedro II em verso e prosa. Pedro II. Departamento Municipal de Cultura de Pedro II-PI, 2001, p. 5-6;
GODOI, E. P. O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas: Editora da Unicamp,1999;
GOMES, É. Contribuição à mineralogia, geoquímica e gênese das opalas de Pedro II-Piauí. (Trabalho de conclusão de curso). Universidade Federal do Pará. Belém, 1990;
LIMA, E.G. Bamburristas da terra da opala: Identidade sociocultural e os desafios frente a políticas de inserção produtiva em Pedro II. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas). Universidade Federal do Piauí, Teresina. Teresina: UFPI, 2008;
MINAMI, M. Y.;
MORAES, M. D. C. Memória de um Sertão Desencantado (modernização, narrativa e atores sociais nos cerrados do sudeste piauiense). Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas. Campinas: UNICAMP, 2000;
MOUNIER, E. Manifesto ao serviço do personalismo. Lisboa: Morais, 1967;
ORLANDI, E.P. A linguagem e seu funcionamento: as forças do discurso. 2 ed. rev. e aum. Capinas, SP: Pontes, 1987;
SEBRAE, Pedra Primeira de Pedro Segundo (catálogo). Teresina, 2007;
SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2003.
BARBOSA, L. Garimpo e meio ambiente: águas sagradas e águas profundas. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n.8, 1991, p. 229-243.







[1]Como, por exemplo, o mito judaico-cristão de Adão, dentre outros. Para mais informação cf. Lima (2008).
[2]Trata-se de uma gema à base de sílica hidrogenada contendo micro esferas de cristobalita (Dióxido de Silício) geomorficamente formada há cerca de 63 milhões de anos (GOMES, 1990).
[3] Localizado na região norte do Estado do Piauí, a 149 km da capital, Teresina, o município foi fundado em 1854 e possui uma população de cerca de 45 mil habitantes (IBGE, 2005). A opala tornou-se, nas últimas décadas seu principal produto de exportação. Cerca de 1000 pessoas trabalham na cadeia produtiva dessa gema.
[4]Outras denominações: pedra da morte, pedra do diabo, dentre outras.
[5]Sem o estudo das condições geológicas/gemológicas do terreno de garimpo, o não emprego de técnicas mais sofisticadas impingiu a bamburristas sacrifícios que custaram a morte de, pelo menos, dez ao longo de seis décadas de extração; além de deixar outra dezena com seqüelas físicas. Por outro lado, o emprego de ferramentas artesanais (enxada, chibanca, alavanca, dentre outras) torna as práticas garimpeiras algo altamente extenuante, expondo uma situação de precarização do trabalho de bamburristas.
[6]Lapidários e joalheiros estão, em sua maioria, filiados à Associação de Joalheiros e Lapidários de Pedro II-AJOLP e se constituem em uma nova elite econômica local.
[7]Conceito aplicado a seres socialmente invisíveis, em função da indiferença ou preconceito de outros. 
[8]O modelo de Arranjo Produtivo Local de Base Mineral faz parte da política pública governamental de inserção produtiva contemplada no Plano Plurianual (PPA). No caso, o APL Opala de Pedro II foi institucionalizado em 2005 com vigência até 2009. Fazem parte deste APL instituições e entidades municipais, estaduais e nacionais.
[9]Na cadeia produtiva da opala, os garimpeiros bamburristas são cerca de 300 homens (dos quais 100 filiados à Cooperativa de Garimpeiros de Pedro II) com idade entre 18 e 65 anos, que ganham em torno de R$ 16,00 por dia durante os meses de março a outubro (meses de estio). Nos demais meses (meses de chuva) praticam agricultura de provisionamento (MORAES, 2000; GODOI, 1999). Outra parcela trabalha como pedreiro, vigia de instituições governamentais no município. O termo ‘bamburristas’ adotado por nós tem como propósito diferenciá-los dos médios e grandes garimpeiros ‘bamburradores’, isto é com mais chances de vir a encontrarem opala em grande quantidade e de melhor qualidade, fato que quando ocorrido os transforma em homens ricos. Os garimpeiros bamburristas (ou bamburristas, apenas) ocupam a base da atividade de exploração da opala. Acima destes estão médios e grandes garimpeiros. As demais atividades são a de lapidação e comércio (joalheiros e lapidários e, de novo, médios e grandes garimpeiros), atividades técnicas (geólogos, gemólogos, engenheiros, psicólogos e assistentes sociais), atividades técnico-artísticas (designers).
[10] Sr. M. D. G., 81 anos que pela nossa classificação trata-se de um grande garimpeiro.
[11]“Plano Geral (PG): Pega todo o ambiente onde está o objeto da filmagem [fotografia] com este pouco definido ao centro (...). Plano Aberto (PA): Pega todo o objeto da filmagem [fotografia] e nada mais (...). Plano Americano (PAm): Muito usado em Hollywood nos anos 40/50, mostra +ou- dois terços do objeto (...). Plano Médio (PM): mostra meio objeto (...). Plano Próximo (PP): Mostra 1 terço do objeto (...) Close: Mostra parte significativa do objeto (rosto ).Super Close (Close Up): Mostra detalhe de parte significativa do objeto (olhos, [mãos])” (DANTAS, 2008: 1).
[12]Montoeira é a denominação local para grandes quantidades de dejetos da extração da opala. Estima-se que no Garimpo Boi Morto, onde as fotos foram tiradas haja 50 milhões de metros cúbicos de montoeiras.
[13]O vocábulo derivaria de prósopon no grego e significa máscara, cara, semblante, algo próximo à palavra latina personare que significa fazer ressoar, uma vez que o uso de máscara no teatro na antiguidade tinha esse objetivo. A pessoa é aquele que está num processo de personalização constante capaz de construir a si mesmo, a cada momento (MOUNIER, 1967).
[14]“Os bamburristas, ao contrário dos demais sujeitos da cadeia produtiva da opala e do Arranjo Produtivo Local da Opala (empresários garimpeiros: joalheiros, lapidários, mineradores eu designers), pouco têm usufruído do bônus financeiro e simbólico da extração dessa gema, sobrevivendo no plano da invisibilidade social, cujo texto e fotografias do catálogo “Pedra primeira de Pedro Segundo”, lançado em janeiro de 2007, vêm reforçar” (LIMA, 2008: 17).
[15]Segundo maior garimpo do mundo na extração de opala, desde 1950. Diversas mineradoras estrangeiras já
[16]O Concretismo é uma escola literária que teve início em 1956 e que despontou com a Exposição Nacional de Artes, em São Paulo, por iniciativa, sobretudo, dos poetas Hélio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos e que dava à forma (gráfica) do poema a mesma importância que o conteúdo.
[17]A disposição das palavras, como se disse antes,  insinua a superioridade da ‘pedra’ sobre ‘Pedro’(mesmo número de letras) e ‘primeira’ (8 letras) sobre ‘segunda’ (7 letras) com praticamente o mesmo tamanho por conter dois ii. A palavra ‘de’ aparece sobre a letra ‘o’ de ‘segundo’ quase ao meio dessa letra.
[18] Fato este detectado em nossa pesquisa. É muito comum bamburristas levantarem um paralelo entre a gema de opala e a figura feminina, comparando a dificuldade inerente à arte da sedução à de encontrar opala. Costumam dizer que em ambas situações o homem é escolhido, não escolhe.
[19]A culturalização “é decorrente da relação inteiramente nova que inúmeras interpretações da sociedade contemporânea estabelecem entre a dimensão cultural (o simbólico) e a sociedade. Segundo o consenso de inúmeros autores, a cultura se torna uma segunda natureza, instalada no centro da sociedade contemporânea” (BARBOSA, 1999: 122). (Parêntese no original).
[20]Em 2006, um trineto de D. Pedro II, em visita ao município, recebeu uma gema de opala como símbolo (e reconhecimento do povo, na visão do poder executivo local) do município.
[21]A expressão-mãe parece ser “cabra da peste”, isto é, valente, corajoso, de acordo com o falar local.
[22] “Para Garmsci (...) o folclore é a concepção de mundo das classes subalternas e a filosofia é a ordem intelectual das classes fundamentais” (ORLANDI, 1987: 248).
[23] A identidade deve ser pensada como a construção de imagem de si para si e de si para os outros, baseia-se, pois em critérios de aceitabilidade e de credibilidade (POLAK, 1992). A construção da identidade sociocultural de determinado envolve relações internas, entre as pessoas do grupo e relações externas, do grupo com outros grupos.

TENDA DA CRUVIANA

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